Tudo começou com um homem - Vladimir Maiakovski. É ele (é?) o ponto final das minhas paixões impossíveis iniciadas na infância com o Matt do Digimon, Zac Efron aos 11 anos, Alex Kapranos aos 14, Vladimir Maiakovski aos 19 e seguimos com ele até hoje. Estava escrito na forma bruta, agressiva, sofrida dos seus poemas que enxergam o mundo exatamente como eu, mas que ninguém nunca tinha transcrito para mim.
Maiakovski era, como eu, desesperado pela ideia de que não viveria para ver um mundo em que todas as opressões se acabassem. A própria ideia de que ele estava preso neste mundo adoecido pelo capitalismo o angustiava de tal maneira que - como eu, as vezes - desejava morrer e ter a sorte da ressurreição num mundo utópico, onde ele seria, enfim, feliz. Maiakovski se suicidou aos 36. Hoje completo 30 anos e espero viver mais algumas décadas, mas se for rolar mesmo o esquema da ressurreição me avisem.
Maiakovski fez parte das vanguardas artísticas russas da revolução que levaram a arte para um patamar - enfim - revolucionário. O teatro é o que é hoje graças a revolução russa, as artes visuais, as escritas, tudo. Entendo que seja por isso que o realismo socialista tenha tido o impacto que teve, afinal, estava-se criando um mundo novo e ele foi castrado pela ideia de uma arte didática que apresentasse os bons valores da mulher e do homem comunistas. Uma arte nem realista nem socialista. Francamente, eu me mataria também.
Foi a partir deste Vladimir que conheci o realismo socialista e me tornei obcecada interessadíssima pelo tema, até porque não foram poucos os artistas perseguidos em nome da boa moral nas artes. Foi a partir deste Vladimir que me convenci que nós, enquanto esquerda, nunca superamos o desejo de uma arte didática. O caro leitor vai me jurar que não, mas sorrio toda a vez que uma obra que não tem uma estrutura de fábula; uma trajetória com início, meio e um final com uma mensagem - como sonhou Aristóteles - coloca os críticos de esquerda em parafuso. Como é possível avaliar algo que está além dos manuais? Como é possível avaliar Ainda Estou Aqui junto ao fato de que todos os filhos de Eunice Paiva são brancos? Como é possível gostar de Pobres Criaturas se a personagem da Emma Stone aparece transando das maneiras mais cômicas e esdrúxulas, profanando um sexo comportado, romântico?
Recentemente fui apresentada por um mais que querido amigo a um canal do Youtube chamado ContraPoints, que se tornou minha mais nova obsessão. Nele, entre varios vídeos interessantissimos, Natalie Wynn utiliza 2h52min para dissecar a série Crepúsculo, falando de como são vistas as narrativas “para mulheres”, fantasia, desejo sexual, entre outras questões que eu queria, mas não posso - para não transformar isso aqui numa tese - detalhar.
Iniciamos pelo fato de que, quando lançado, Crepúsculo foi recebido com terríveis olhos não só pela crítica literária, mas pela sociedade em si. “Bella é um mal exemplo para as garotas e o que esperar de um namorado”. Comprei tudo isso. Eu, que ansiava por provar na minha adolescência que eu não era fútil como são as garotas, fazia questão de ser uma menina que, apesar de menina, era inteligente e lia livros qualificados (Harry Potter).
Crepúsculo realmente não é uma obra prima, contudo, é interessante notar o fato de que não existem romances para o público feminino que não tenham, no mínimo, sido chamados de literatura de segunda categoria na história contemporânea. O interesse feminino é, afinal, um interesse de segunda categoria - machismo, etc. Sendo um livro bem escrito ou não, cheio de furos e escolhas narrativas questionáveis, podemos olhar Crepúsculo pelo que ele realmente ele é: uma saga que utiliza do fantástico para contar uma história que englobem as fantasias sexuais de Stephanie Meyer, quer ela admita isso ou não.
(E qual o problema? Filmes da Marvel tem sido feitos a toque de caixa contando histórias de homens musculosos, viris, não ironicamente num momento da história humana em que o mundo masculino se preenche da ideia de que, para conquistar uma mulher, é necessário bíceps definidos e uma dose de brutalidade, mas ninguém diz que os filmes da Marvel são maus exemplos para os garotos e zombam do imagético sexual criado pelos filmes, vejam bem).
No caso de Crepúsculo, estamos tratando da classica fantasia sexual - particularmente muito comum à mulheres, mas não irei elaborar - de dominação: Bella, frágil, Edward, um semideus que guia a vida da personagem por caminhos que ela sozinha não poderia ter trilhado, talvez porque não seja ensinado a nós que trilhemos esse caminho. Edward a leva aos prazeres de seu mundo sem que ela nunca seja responsabilizada por isso, afinal, é uma dominação. É conveniente, afinal, nada melhor do que ter sua sexualidade explorada sem que você, mulher, seja culpabilizada por isso - e nós, casualmente, somos mães de todas as culpas, especialmente as sexuais.
Existem, claro, implicações políticas óbvias do porquê é tão comum que neste mundo binário o feminino, em geral, se encontre (e deseje se encontrar) na posição de dominado. Contudo, o que quero focar aqui é o fato de que o sexo não é o que a gente quer que seja, ele é o que ele pode ser, e ele é realmente é tanta coisa. Uma delas é que ele não é clean. Pode-se tentar, e se tenta muito, que ele seja obediente a certos posicionamentos políticos, mas na hora da coisa acontecer o sexo raramente é. Sexo é jogo, e, como dizem os antropólogos e psicólogos que pensam a brincadeira, ele existe para além do mundo material: governado por regras concretas,ingovernável em suas implicações imateriais. No fim, o sexo não é bom nem mau, ele apenas é. E ele está presente na literatura mais complexa à mais tosca e onde os teóricos do realismo socialista contemporâneo não conseguem alcançar, porque a sexualidade não pode ser moldada por suas mãos manualescas.
Chegamos em Anora, um filme que não gostei tanto porque a gritaria toda impedia que as piadas chegassem onde deveriam e os personagens se repetiam tanto que eu era capaz de dar suas falas antes que eles abrissem a boca, mas que agora estou tendo que defender com unhas e dentes. Assisti um número vergonhoso de vídeos de mulheres dizendo que o filme não era mais nada do que male gaze (feito para agradar o olhar masculino). Como se mulheres não transassem. Como se os homens nos objetificassem menos quando utilizamos muitas roupas, falamos com voz firme e exigimos salários iguais.
Apesar das minhas críticas, que existem porque sou meio mau humorada mesmo, Anora tem uma série de inserções interessantes sobre classe e gênero. A minha favorita é uma das finais, em que Ani olha para Victor e cospe que ele é tão ridículo que não teria a coragem de estuprar ela.
Ele não teria a coragem de estuprar ela?
Uma frase visceral sobre as relações de gênero. Certo, nenhuma mulher quer ser estuprada, mas não é disso que a cena se trata. A cena trata do obscuro fato de que, em um mundo binário, um homem deve ser brutal a ponto de enxergar em uma mulher apenas violência sexual, enquanto a mulher deve ser atraente a ponto de que desejem que violem seu corpo, sem que de fato a violem, porque isso seria terrível. É uma desgraça para uma mulher, em termos de relações de gênero contemporâneas, que nenhum homem a deseje como um objeto de violência, o que significa que Ani se sentiria melhor sim, apesar de toda a humilhação sofrida, se Igor pudesse conceder a afirmação de que ela é incontrolavelmente desejável.
Trazer isso a tona envolve compreender que a prisão da binariedade é um cárcere de violência; que estamos longe de viver relações de gênero não baseadas na exploração mas que, em níveis mais saudáveis, a sexualidade envolve, sim, deixar-se tomar controle pelo outro. Se quisermos uma sociedade saudável em gênero e sexualidade, os dois primeiros pontos precisam ser debatidos e desconstruidos em suas bases, contudo, o terceiro ponto é um dado desagradável para um norte de empoderamento feminino em que a mulher se basta em si - coisa que o sexo aponta para o sentido oposto.
Existem poucos comportamentos humanos tão próximos ao descontrole que o orgasmo, e entregar-se a ele numa relação sexual é deixar uma parte de si com o outro, que se energiza a partir desse prazer. Faz parte da vida: desejamos o outro e queremos ser desejados num nível que envolva o toque, a saliva, o gozo, e nisso o sexo se mostra uma relação vampírica; uma relação antropofágica. Os defensores da moral e dos bons costumes na vida e nas artes podem lidar com esse fato de maneira indigesta, mas ele está lá. Será que não podemos ver a submissão ao outro sem tantos julgamentos?
Vivemos uma onda conservadora fascistissima onde jovens no twitter propõem que cenas de sexo sejam suprimidas dos filmes, com o argumento de que elas não adicionam nada à história - como se sexo não fosse a própria história. Estamos caminhando para o fim da metáfora onde os predadores dos livros de ficção são substituídos por enlatados de true crime, que oferecem meramente informações técnicas, onde não se reflete (ou se finge não refletir) sobre a presença das relações de dominação e submissão que tangenciam a sexualidade humana, tão caras a esse tipo de história. Perdemos a fantasia, a nuance, o não dito, em troca da realidade insípida que se disfarça de objetiva, quando na realidade não é.
Voltando. A graça do realismo socialista é que, em verdade, ele nunca foi uma particularidade do socialismo - apenas uma tendência das artes do mundo no pós-II Guerra. O realismo socialista não é realista nem socialista porque ele é essencialmente capitalista, e estamos mais uma vez (se é que já nos livramos dele) nos enredando em seus nós, buscando artes, publicidades eu diria, que a nova mulher e o novo homem socialistas devem consumir, a fim de construir um mundo novo, que será velho porque essecialmente obedece ao comportamento imperial do capital. De algum jeito absurdo, juntei Crepúsculo e Anora porque, creio eu, os que os faz tão indigestos a certos olhares é a crueza com que tratam sobre o sexo, olhar para isso nem sempre é fácil.
Finalizo esse texto onde comecei, ou mais ou menos: se quisermos construir um mundo novo, precisaremos fazer as pazes com o imponderável da fantasia e da entrega ao outro, abandonando a didática quando essa não convém. Saber que a arte, o sexo, a brincadeira pertencem ao campo do descontrole e que a verdadeira revolução virá da aceitação do que não pode ser medido. Dito isso, ando de saco cheio desse conservadorismo e proponho a volta da Marcha das Vadias que, mil críticas a parte, a gente se divertia com os tão subjetivos peitos de fora - quem vamos, gurias?
Eu não acredito que tu vai me fazer assistir Anora!
Mais um texto maravilhoso de se ler. Não esperava por essas junções. Incrível